Eu, Anna Theodora, por minhas amas e meus pretos, Sinhá Anna, Sianna ou madrinha, assim escrevo do meu próprio punho e letra:
Rogo ao Senhor, seu Bispo, Silvério Gomes Pimenta, a quem o Ilustre Compadre Juvêncio Pinto de Moraes Lara e a Sra. Maria Francisca de Freitas Lara, hão de confessar e pelo Senhor serem benzidos na Capela de Sta. Clara, nas minhas terras, no Serro das Minas Gerais, que será hoje consagrada, nesse dezessete de maio de 1980, e depois deste ato, para o qual estamos paramentadas com austeridade e sobriedade do século XVIII, desde o uso do verdugo e corpetes rígidos cosidos a varetas metálicas, duas ordens de mangas e altas gorgeiras brancas, para a liberação do sacramento da união do meu filho, João Soares Ferreira Primo, com Augusta Hygina de Lara e a para que depois dele a moça tenha o mérito de aqui habitar.
Requisitei o meu leque de seda e encarreguei alfazeres à mucama Adriana, a quem ensinei traçar malhas rendadas, transformadas por mãos na arte do crochê. A ela, que certamente será a mais longeva dentre as minhas outras pretas, além de garantir a sucessão destes ensinamentos às minhas filhas, netas e bisnetas que, por ser especial para nós, solicitei que acompanhe o senhor e a ilustre Cantilena, para escolherem por xávega um dos meus galos de Barcelos, das terras dos meus antepassados, na região costeira do Porto e trazidos para Mariana, nas Minas Gerais, no ciclo do ouro. Como o senhor bem sabe, meus dois avós foram designados Guarda-mores, por serem fiéis à Deus e à Coroa, mas deslocados para no Serro fazer a justa partilha da Quinta, nas novas minas que por aqui surgiram. Viemos e os galos vieram conosco também por cá. Sempre os oferto em ocasiões especiais, pois são eles que anunciam ao alvorecer, bons presságios, virtudes e salvam peregrinos, como nas terras portuguesas dos meus antepassados. Somos também peregrinos no Brasil e por aqui testemunhamos a fé e o que foi prometido em batismo, na Freguesia de Santa Clara do Sertão, Bispado do Porto. Como é nossa tradição, sacramentamos todas as nossas uniões e nesse ato honramos a memória do meu avô, o Alferes Guarda Mor Antônio Soares Ferreira, do Porto, e sua esposa, Catharina Teireira, de Guarapiranga, MG, sepultado dentro da nossa Matriz, aqui em Pinhui em 1826, recordando o compromisso matrimonial do dia 08/05/1754, na Catedral de Mariana, Minas Gerais, na memória do ofício da família, da nossa sorte e o que foi aqui aquinhoado.
Do que tenho e acima do meu poder de mando, melhor que minhas lavouras, a encosta da serra e os pastos de colonião, são meus pretos e mulatas, bons de serviço, gente trabalhadeira e que não se encontra mais, que não me deixa perecer às dificuldades, que não me abandona, nem sendo livre. Escolhi entre eles, os católicos, para neste desposório ornar nossa capela dedicada à Sra. Clara, na companhia de São José, São João e Imaculada Conceição. Ordenei que tivesse mais flores para São José, como agrados meus, por reconhecer nele a devoção da minha futura nora. Faço bem gosto no casamento do meu filho com esta senhorita, que é de fé e generosidade. Que o Senhor, seu Bispo, depois da confissão dela e dos senhores seus pais, verifique e confirme também, com seu jeito, se com estas virtudes ela merece estar aqui, depois da minha morte. Que na reza de hoje e em nossa tradição, seja revivescida, como agradecimento, a primeira núpcia do meu avô e assim se reze por Portugal, Espanha e Brasil. Que os nubentes e seus descendentes não tenham tempo para lamentar esperanças e que sua prole seja feita para durar, pecar e purgar, parindo uma alma livre para, afinal, viver eternamente. Que coloquem nos seus sonhos o que há de triste ou bom, mas que em cada um ache a sombra da beleza e que possa sorrir a glória, todas as suas esperanças, renovadas a cada manhã, todas as vezes que o galo cantar.”
Anna Theodora Soares Ferreira